Aproveitamento de águas pluviais e de águas cinzentas em edifícios.
Armando Silva Afonso | Carla Pimentel Rodrigues
Associação Nacional para a Qualidade nas Instalações Prediais
Devido não só ao crescimento demográfico, mas, fundamentalmente, ao desenvolvimento económico e ao nosso estilo de vida, a água potável é hoje um recurso escasso que, de bem comunitário e patrimonial, se transformou ao longo das últimas décadas em bem económico. As alterações climáticas têm agravado este cenário e prevê-se que em alguns países, como Portugal, a previsível redução da precipitação ou a alteração do seu regime possam a curto/médio prazo criar situações de stress hídrico.
Sendo um bem escasso e essencial à vida, a eficiência no seu uso deve ser uma prioridade a todos os níveis. A necessidade de um uso eficiente da água foi já reconhecida com prioridade nacional em 2001, através da publicação do PNUEA – Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água. Entre as ações propostas neste programa, podem referir-se diversas medidas aplicáveis no ciclo predial da água (usos interiores e exteriores) no âmbito do aproveitamento das águas pluviais e da reutilização das águas cinzentas. Infelizmente, este programa nunca veio a ser implementado, apesar de ter sido objeto de uma atualização em 2012.
O aproveitamento de águas pluviais ou cinzentas em edifícios pode evitar o fornecimento de água potável para alguns usos específicos, permitindo, permitindo, para além da redução da água captada (e da pressão sobre as massas de água), uma redução nos consumos energéticos e nas emissões de GEE. No que se refere especificamente ao aproveitamento de águas pluviais em edifícios, ele pode também contribuir para a redução dos picos de cheia em meio urbano, razão pela qual tem conhecido um interesse crescente em muitos países, mesmo sem escassez de água ou stress hídrico.
Em Berlim, por exemplo, os sistemas de aproveitamento de águas pluviais foram introduzidos com sucesso à escala urbana, na reabilitação de grandes espaços, como a Potsdamer Platz, onde a água da chuva recolhida em coberturas de 19 edifícios (32.000m2) é armazenada num tanque de 3.500 m3. Em Tóquio, mais de 750 edifícios públicos e privados introduziram a recolha de águas pluviais e sistemas de aproveitamento. No Brasil, foi publicada em 2007 a norma técnica brasileira ABNT NBR 15527, sendo o aproveitamento de água da chuva obrigatório, por exemplo, em S. Paulo. Em Espanha, algumas autoridades locais exigem que os novos edifícios tenham sistemas de reutilização de águas cinzentas, como parte de uma estratégia para lidar com a escassez de água.
Contudo, a reutilização de águas pluviais e cinzentas em edifícios engloba riscos ambientais e sanitários que devem exigir controlos adequados. Esta recomendação consta, aliás, do chamado “Blueprint Water”, da Comissão Europeia. Considera-se, assim, que a elaboração e divulgação de especificações técnicas para o aproveitamento de águas pluviais e para a reutilização de águas cinzentas é essencial para fomentar o recurso voluntário a estes sistemas, mas a necessidade de redução dos riscos sanitários exige também uma certificação obrigatória dos sistemas.
Em Portugal, a ANQIP (Associação Nacional para a Qualidade nas Instalações Prediais), associação sectorial para as instalações prediais de águas e esgotos, que tem entre os seus membros empresas, universidades e entidades gestoras, tem desenvolvido um amplo trabalho técnico-científico de base no domínio do aproveitamento da água da chuva e da reutilização de águas cinzentas em edifícios, no qual se inclui a elaboração e publicação de especificações técnicas e a criação de sistemas de certificação voluntária para as instalações. Neste último aspeto, a ANQIP foi mesmo a primeira entidade europeia a dar resposta às exigências do “Blueprint Water”.
No que se refere aos sistemas de aproveitamento de águas pluviais em edifícios (SAAP), a ANQIP constituiu em 2007 uma Comissão Técnica (CTA 0701), que produziu, com base nas experiências brasileira e alemã, entre outras, e na sua adaptação à realidade nacional, duas Especificações Técnicas: a ETA 0701, visando a conceção, dimensionamento, instalação e manutenção dos SAAP, e a ETA 0702, visando a certificação técnico sanitária destes sistemas. De notar que a ETA 0702 (para a certificação das instalações) foi precedida de um amplo trabalho de campo, com monitorização de instalações piloto ao longo de vários meses e em termos de numerosos parâmetros, incluindo a legionella.
Recentemente, em 2018, foi finalmente publicada uma Norma Europeia (EN 16941-1) para estes sistemas de aproveitamento de água da chuva em edifícios, muito baseada nas normas alemãs, mas que não cuidou da necessária adaptação destes sistemas a realidades climáticas diferentes, como é o caso dos países do sul.
Este é um os motivos que justificam a prevista revisão, para breve, dessa Norma, num processo que contará com a participação da ANQIP. Note-se que a Norma Europeia também não contemplou, na sua versão inicial, as questões de certificação das instalações. Por este motivo, as ETA 0701 e 0702 da ANQIP continuam a ser o referencial utilizado em Portugal para estes sistemas.
Em relação aos sistemas prediais de reutilização de águas cinzentas em edifícios (SPRAC), a ANQIP seguiu um procedimento análogo, tendo publicado, já em 2009, a Especificação Técnica 0905, para conceção, dimensionamento, instalação, controlo e manutenção dos SPRAC, e a ETA 0906, para a certificação técnico-sanitária das instalações. Entretanto, em 2021, foi também publicada uma Norma Europeia para estes sistemas (EN 16941-2), que nada acrescentou, todavia, ao que já estava estabelecido 12 anos antes em Portugal, através das ETA da ANQIP, mantendo-se estas especificações técnicas, mais completas, exigentes e exaustivas do que a Norma Europeia, como referencial entre nós.
Deve notar-se que as ETA 0905 e 0906, tal como a EN 16941-2, visam as chamadas instalações coletivas ou de longo tempo de retenção. Para além destes sistemas, existem também no mercado pequenas instalações individuais para reutilização de águas cinzentas, como é o caso de lavatórios acoplados a sanitas, onde a água utilizada no lavatório é utilizada seguidamente para descarga no autoclismo. Estes aparelhos compactos, a que não se aplicam as ETA 0905 e 0906, são objeto de uma certificação individual da ANQIP, na categoria de “produtos eficientes” (catálogo disponível em www.anqip.pt). Para além destes produtos, apareceram recentemente no mercado pequenas instalações compactas de regeneração de águas cinzentas, que constituem uma solução intermédia entre as instalações individuais e as grandes instalações coletivas, e que também têm estado a ser objeto de certificação técnico-sanitária pela ANQIP, para segurança dos utilizadores.