Neta do fundador da Janz, Contadores de Energia, Teresa Janz soube conquistar o seu lugar na empresa e no associativismo, quando as mulheres rareavam nesses circulos. Foi sozinha para África aos 20 anos, chegou a conduzir uma BMW 650 e pôs o marido a partilhar tarefas domésticas para que ambos se pudessem dedicar à carreira. Esta entrevista foi concedida para o livro “Memórias de Executivas”.
Foi educadada mesma forma que os seus dois irmãos e sempre incentivada pelo pai a fazer o mesmo que eles. “O meu pai foi um pilar importantíssimo na minha vida”, afirma. Aos 20 anos confiou-lhe a missão de ir a Angola acompanhar o processo de falência de uma empresa que detinha com um sócio italiano. Teresa Janz geriu tão bem a situação que a transformou num projeto rentável. No regresso a Portugal, com 28 anos, assumiu o cargo de administradora da Janz, empresa fundada pelo avô, onde todos a conheciam por Teresinha e a cumprimentavam com beijinhos.
O seu maior orgulho é a Associação Ester Janz, com as valências de creche, pré-escolar e 1.º Ciclo, que acolhe os filhos dos trabalhadores, permitindo-lhes conciliar melhor a vida profissional e a familiar. Era uma ideia da avó paterna que Teresa Janz não descansou até transformar em realidade e que, juntamente com outras medidas de conciliação, que já vêm do tempo do pai, valeram à Janz, em 2000, o prémio “Igualdade É Qualidade”, atribuído pela CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego.
Trabalhou toda a vida, mas sempre soube divertirse. Tem vários grupos de amigos, um dos quais de motards. Tem carta de moto e chegou a conduzir uma BMW 650 cc. Já desacelerou na vida profissional, mas continua a ir à empresa todos os dias. O seu rosto ilumina-se quando diz que a sucessão da terceira geração Janz está assegurada na empresa centenária, contrariando a máxima de que as empresas familiares não chegam à quarta geração.
Como foi a sua infância?
Sou a terceira de quatro irmãos. Nasci na Alameda Afonso Henriques e fui batizada na Igreja dos Anjos. Desde pequenos que o meu pai nos incentivou a passarmos um tempo na empresa. Os meus irmãos mais a sério do que eu.
Os meus irmãos foram para a reparação de contadores para água e eletricidade, para conhecerem como eram os contadores por dentro. A mim não me eram destinadas essas funções, mas como os via ao fim da semana a ganharem um dinheirito e eu não ganhava nada, nas férias pedi ao meu pai para ir também. Pôs-me a contar peças de latão, de um bidão para outro. Um dia volto atrás e verifico que um empregado mudava a posição dos bidões e eu, no dia seguinte, contava as mesmas peças. Era sucata. O meu trabalho não era útil. Fui ter com o meu pai e mostrei-me ofendida por me ter dado um trabalho que não servia para nada. Reconheceu as minhas razões e no ano seguinte o meu trabalho foi o de numerar, de forma sequencial, os livros usados para registar toda a organização da empresa. Finalmente, senti-me a fazer um trabalho mais sério e com alguma utilidade.
Rapidamente comecei a achar que numerar os livros era cansativo e repetitivo. Como entretanto aprendi a ler e fazer contas, o meu pai encarregou-me de conferir as faturas. “Tens de fazer bem as contas para ver se as faturas estão certas”, avisou-me. É claro que as faturas estavam sempre certas, pois já tinham sido conferidas.
Quando percebi isso voltei a pedir um trabalho de maior responsabilidade e fui aprendendo um pouco de tudo o que se fazia na empresa. Conferi folhas de caixa, aprendi a trabalhar no PBX (que era muito moderno e complicado) e fui fazendo todos os trabalhos administrativos da empresa.
Que idade tinha?
Comecei a vir para a empresa por volta dos 8 anos. Vinha com o meu pai porque a minha mãe nunca trabalhou. Gostava deste ambiente. Aqui aprendi a fazer tudo, até a patinar. Vínhamos no mês em que terminávamos as aulas. Ganhávamos algum dinheiro para comprarmos gelados em agosto.
Onde estudou?
Andei no Colégio São José. Aos 11 anos fui para as Doroteias, como interna. Nessa altura o meu pai ganhou um concurso público para fazer uma fábrica de contadores de água no Egito, em Alexandria, e passou lá quatro anos. Vinha muitas vezes a Portugal, mas a minha mãe ficou sozinha com quatro filhos.
Os dois do meio, onde me incluo, eram os mais problemáticos. O meu irmão mais velho ainda hoje é um paz de alma – os empregados dizem que quando querem uma resposta positiva vão ter com ele – e a minha irmã, que é cinco anos mais nova do que eu, também não dava trabalho.
O irmão mais próximo de mim foi interno para o Colégio D. Diogo de Sousa, em Braga. Passados dois anos voltei para o colégio de São José já numas novas instalações no Restelo.
Foi a primeira vez que se afastaram da família?
Não. Desde os 8 anos que passávamos um mês de férias longe da família. Os meus irmãos iam para campos de férias na Suíça ou Inglaterra, onde de manhã aprendiam Inglês e à tarde tratavam dos cavalos, faziam coelheiras e tratavam dos coelhos e faziam trabalhos da quinta. Quando eu tinha 8 anos o pai foi pôr-me ao comboio, o Sud Express, e viajei sozinha para Salamanca para passar um mês com uma família que o meu pai tinha conhecido no verão anterior. Foi um episódio maravilhoso porque foi a primeira vez que saí sozinha de casa.
Não teve receio?
O meu pai explicou-me que não havia perigo e recomendou-me ao revisor. Deu-me uma pasta com 300 pesetas com a advertência de nunca desviar os olhos dela, nem a dar a ninguém. Era muito dinheiro para a altura, mas o pai não queria que me faltasse nada. Levei a recomendação tão a sério que quando cheguei e me quiseram ajudar com as malas, não deixei que ninguém pegasse na pasta, explicando que o pai tinha dito para eu não a entregar a ninguém.
Foi uma amizade que perdurou?
Foi uma amizade que foi tomando forma ao longo dos anos e que se mantém até hoje. Para a época era uma ousadia enviar crianças sozinhas para estudar fora, sobretudo uma menina. Os portugueses não faziam isso nem aos rapazes, quanto mais às raparigas! O meu pai considerou sempre que a formação era um grande investimento que fazia nos filhos.
Em casa a educação era igual para os rapazes e para as raparigas?
Exatamente igual. O meu pai dizia: “Não és capaz porquê?! És igual aos teus irmãos”. Foi um pilar importantíssimo na minha vida.
Mas o seu pai atribuiu-lhe um trabalho diferente do dos irmãos na fábrica.
Porque eu não queria ir para a produção. Eu gostava mais de fazer o trabalho administrativo do que mexer em peças sujas.
Aprendeu as tarefas domésticas?
Tivemos a felicidade de termos pessoal para ajudar em casa. Eu aprendi a cozinhar muito rudimentarmente porque tínhamos uma cozinheira de mão cheia que não deixava os meninos estarem na cozinha. Os meus irmãos nunca aprenderam nada, mas eu gostava de estar na cozinha com ela e com a minha mãe, com quem aprendi a fazer bolos.
Aprendi muita coisa com a minha avó, mãe do meu pai, mulher do fundador desta empresa. Na altura havia muito as quarentenas – a do sarampo, da papeira –, e eu gostava muito de ir para casa da minha avó. Era uma pessoa muito culta, falava quatro línguas. Demos o seu nome à nossa associação, Ester Janz. Ela é que me ensinou muita coisa: a pregar os botões, a coser, a fazer ponto-cruz. Dava-me muita atenção. Jogava às cartas comigo e deixava-me sempre ganhar. E cada vez que eu ganhava, ela dizia: “Ah! como é que tu consegues?!”. Conversava comigo como se eu fosse uma pessoa crescida. Lia-me tudo e mais alguma coisa. Marcou muito, muito, muito a minha educação. Ela lia muito, muitas revistas estrangeiras. E eu lia para ela em italiano, porque ela gostava. E assim habituei o ouvido ao Italiano e tenho uma relativa facilidade em falar.
Fala muitas línguas?
Para além da nossa língua materna, falo fluentemente Francês e Espanhol. Inglês e Italiano são línguas que já não domino tão bem.
Com o seu pai também aprendeu muito.
Sem dúvida. O meu pai era muito austero, severo. Com ele quase nem respirávamos. Quando nos abria os olhos nem sabíamos o que é que havíamos de fazer! Com a minha mãe brincávamos muito.
A hora da refeição era sagrada. Às 12h30 e às 19h30 tínhamos de estar todos sentados à mesa, inclusive a minha mãe. Nós dizíamos que a minha mãe era o quinto filho. Comíamos a sopa em silêncio, mas durante o resto da refeição o meu pai brincava muito connosco, de várias formas: dava-nos uma charada para resolvermos, brincávamos ao 31, ou não podíamos usar o ‘não’ nas frases. O objetivo era exercitarmos o cérebro. O pai é que nos dava as explicações de Matemática. Ensinava-nos tudo. Falava connosco como se fossemos adultos. Qualquer coisa que nós perguntássemos, o meu pai tinha a explicação adequada à idade.
Os brinquedos que o nosso pai nos dava eram sempre coisas didáticas, tínhamos de tirar partido deles. Nunca nos deixou fazer atividades que não servissem para o nosso futuro. Nunca tivemos muitos brinquedos. Os meus irmãos tiveram um Meccano porque o meu pai entendia que as brincadeiras deviam ter sempre um fim construtivo. Eu tive apenas uma boneca que o meu pai me tinha trazido da Alemanha e que era extraordinária porque dava dois passos.
Cresceu num ambiente muito estimulante.
Sem dúvida. Havia o hábito de todas as sextas-feiras a família ir jantar a casa da avó Ester e, às terças-feiras, os netos e sobrinhos-netos iam almoçar a sua casa. Podíamos levar os namorados porque a minha avó tinha uma cabeça extraordinária. Ainda hoje recordamos essas terças-feiras. A minha avó divertia-se e ria connosco. Nós éramos com uma lufada de juventude para ela. Mais tarde, quando já tínhamos a carta, era a avó que nos emprestava a chave do carro para sairmos em grupos de quatro. Tirou a carta já com quase 60 anos. E aos 80 foi entregá-la na Direção-Geral de Viação, ao diretor. As pessoas normalmente não faziam isso, por isso ele achou graça e recebeu- a.
Quais eram as expectativas dos pais em relação ao seu futuro? Era que casasse e tivesse filhos ou que construísse uma carreira?
O meu pai nunca me falou em nada de concreto. Era muito mais exigente em relação aos resultados dos meus irmãos do que aos que eu trazia do liceu.
Era boa aluna?
Era muito boa aluna a Matemática e gostava muito de Química. Foi sempre a Matemática que me ajudou a salvar as médias. Era boa a Português, Inglês e Francês, mas a História e Geografia era mais complicado. Quando terminei o liceu não sabia exatamente o que é que queria fazer. Então, propus ao meu pai ir para Paris para aperfeiçoar o Francês e, como não tinha ainda apetência para nada em especial, fui fazer o curso de Civilização Francesa na Sorbonne. Era um curso generalista, mas com várias disciplinas de que eu gostava, como Política, Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Geografia, História, Literatura.
Estava no final dos anos sessenta?
Em 1967. Comecei por ir para casa dos meus tios, mas não gostei. Era um ambiente muito sofisticado, as regras eram diferentes das nossas, tal como o conceito de família. Em casa dos meus pais vivíamos com os pés bem assentes na terra e de uma forma muito natural. Decidi inscrever-me para ser babysitter em Paris, para poder tornar-me independente. Enquanto tomava conta de crianças ganhava para mim e o meu pai escusava de mandar dinheiro. Mas só durou dois ou três meses. Trabalhava sábados e domingos e o tempo de estudo era muito pouco.
Para o seu pai esse trabalho era aceitável?
O facto de eu estar no seio de uma família já era aceitável. Ele queria sempre que se aprendesse qualquer coisa e eu ia conhecer uma cultura diferente da nossa. Assim que vi que ser babysitter não me permitia estudar, escrevi para a Gulbenkian e pedi se me arranjavam um quarto no edifício de Portugal na cidade universitária. Consegui. Não tinham espaço na área das raparigas, mas tinham um quarto de casal, que ocupei com uma amiga. Foi muito divertido estar na cidade universitária porque ali se misturavam várias culturas. Todos os países estavam ali representados. Cada edifício tinha a sua cultura e as suas festas.
Mantém contactos dessa altura?
Não. Entretanto aconteceu o Maio de 68. Adorei! Foi uma animação! Fui às Galerias Lafayette, comprei umas calças encarnadas, uma camisa branca e um casaco encarnado e achei que era comunista. Com toda a seriedade fazíamos as nossas sessões de política na cidade universitária. Não na Sorbonne. De repente, a Casa de Portugal estava ocupada pelos portugueses do Partido Comunista Português, que estavam pouco organizados.
Depois, foi a ocupação da Sorbonne e as barricadas, mas nunca me meti nelas. Nunca tive esse espírito guerreiro para me meter em confusões. Ia sabendo o que é que se passava, mas não me envolvia. O meu pai, que acompanhava as notícias pela televisão, ligava-me, e eu dizia-lhe que nunca me apanhariam numa coisa daquelas. Ele sabia que podia confiar em mim. Porém, no final de maio os meus pais foram a um congresso no Lago de Constanza, na Alemanha, e o meu pai, telefonou-me e disse-me: “Teresa, tem tudo preparado porque amanhã às 8 horas da manhã eu vou-te buscar.” Ao meu pai não se dizia que não.
Os camaradas, como nos tratávamos na altura, ajudaram a levar as malas para o carro. A minha mãe ficou impressionadíssima: “Camarada?!” Apresentei-os aos meus pais e partimos.
Chegou a concluir o curso?
Não. O curso era de quatro semestres. Faltava fazer os exames do último semestre. De nada teria adiantado argumentar com o pai, até porque na altura nem havia exames. Poderia ter voltado mais tarde para os fazer, mas nunca voltei.
Chegou a ter tarefas políticas?
Quando foi a ocupação da Casa de Portugal pelo Partido Comunista Português eu disse: “Quero fazer parte”. Deram-me uma braçadeira que dizia CO – Comité de Ordem. Fiquei orgulhosa, apesar de o meu papel ser o de arrumar as cadeiras para as reuniões.
Simpatizava com as causas de esquerda?
Quais causas?! Eu sabia lá quais eram as causas! [risos] Eu gostava da animação. Tinha 20 anos.
Os “camaradas” nunca perceberam que talvez tivesse mais dinheiro do que eles?
Não, porque eu guardava a mesada. Sabia que eles não tinham aquele dinheiro. Na altura as refeições nos restaurantes universitários custavam 7 escudos e 50 centavos, o mesmo que um café numa esplanada. É claro não me ia pôr a tomar um café numa esplanada. Depositava o dinheiro e ia gastando o que os outros gastavam.
Não houve incidentes no regresso a Lisboa?
Não. O único foi que os meus camaradas me tinham entregue um molho grande de cartas para pôr no correio em Lisboa. Quando o meu pai viu aquilo disse logo que seriam postas no correio na Suíça. E assim foi.
Como foi a sua vida quando voltou a casa?
A primeira coisa que o meu pai fez foi começar a dar-me livros. Dediquei-me à leitura durante junho e julho, até que o meu pai me lançou um desafio. Disse-me que tínhamos uma empresa em Luanda, em sociedade com um sócio italiano, que estava à beira da falência e pediu-me para ir tratar de tudo o que era necessário. Como a ignorância é muito atrevida, eu aceitei. Meti-me a caminho de Luanda para fazer não sabia o quê, mas convencida de que se o meu pai tinha confiança em mim é porque eu era capaz. É preciso ver que eu já conhecia todo o trabalho administrativo de uma empresa.
Sempre sentiu que o seu futuro seria no negócio da família?
À medida que cada um de nós fazia 18 anos, íamos ao notário com o meu pai, éramos emancipados e era entregue a cada um de nós uma participação de 10% da empresa. Isso fez com que sempre nos agarrássemos à empresa e sempre recebêssemos os dividendos. Não só era a responsabilização, como recebíamos a contrapartida da nossa responsabilização.
Quando foi enviada para Luanda os irmãos já estavam na empresa?
Não. Eles fizeram a universidade, depois o serviço militar, e então foram para Moçambique. Primeiro o meu irmão mais velho, depois o outro irmão, que esteve lá muito pouco tempo porque pisou uma mina e perdeu um pé.
Como correu a experiência em Luanda?
Cheguei a Luanda no dia 4 de agosto. Comecei a ver as pastas, as cópias das faturas, e tudo aquilo me parecia mal. Pedi à Cooper Brothers que fizesse uma auditoria à empresa, porque não sabia por onde é que havia de começar. Enquanto eles faziam a auditoria visitei todas as câmaras municipais que eram nossas clientes de contadores de água e pedi para que não pagassem nada até que eu lhes pedisse o dinheiro. Fui conferindo a conta corrente e verifiquei que muitas coisas não estavam faturadas.
Não se sentia sozinha nesse processo?
Tinha um acordo com o meu pai: dia sim, dia não eu mandava-lhe uma fita gravada a relatar como tinha sido o dia, as dificuldades que tinha encontrado e como tinha conseguido ultrapassá-las. Depois recebia a fita do meu pai com os comentários. A única forma que tínhamos de conversar era esta. Por telefone era muito difícil. Acho que me fez muito bem. Falar para uma fita é muito diferente do que estarmos a falar ao telefone. Tinha de fazer um esqueleto primeiro para depois falar das coisas de uma forma sequencial.
Como concluiu o processo?
Na altura, a empresa vendia não só os nossos contadores, mas também material para o exército, rádios. Tínhamos representações da Motorola e da Auriemma. Depois de muito trabalho e de já saber quanto dinheiro tínhamos para receber, propus ao meu pai e ao meu tio que, em vez de entrar em falência, fizéssemos uma cisão. Nós ficávamos só com os contadores, que era a área de que percebíamos, e criava-se outra empresa, que ficaria com toda a parte de rádio, cujos sócios seriam os trabalhadores. Eles aceitaram e eu encarreguei-me de receber tudo o que tínhamos a receber. Não foi fácil, mas eu era jovem, muito persistente, e consegui.
Era normal uma mulher tratar sozinha dos negócios?
Tive sempre muito apoio do pai da minha futura cunhada, que era administrador da Petrangol, Coronel Manuel Mexia. Angola era totalmente diferente daqui. Durante a fase de visita às câmaras municipais fiz a parte sul de Angola de carro. Quando cheguei a Benguela e me dirigi à câmara municipal para falar com o presidente ele tinha acabado de sair para almoçar. Como se fazia a sesta a seguir ao almoço, percebi imediatamente que iria demorar imenso tempo. O porteiro, ao ver a minha cara, indicou-me a casa do presidente e sugeriu que lhe fosse bater à porta. Assim fiz. Disse quem era, mandaramme entrar e receberam-me com toda a simpatia. Convidaram-me para almoçar, tratei do assunto e vim-me embora mais cedo. Este era o trato das pessoas que estavam em Angola. Quando uma pessoa se apresentava em casa de alguém a horas de refeição, iam todos para a mesa e a conversa prosseguia. Este foi o ambiente que encontrei em todos os sítios por onde passei.
Vivia sozinha em Luanda?
Não. Vivia com o meu irmão, que estava a estudar Engenharia Mecânica na Universidade de Luanda. Costumo dizer que foi como que o meu primeiro marido. Foi ele a cobaia das minhas iniciativas culinárias. Eu só sabia fazer carne assada e peixe assado. E ele dizia: “Já não sei se estou a comer carne, se estou a comer peixe”.
Foi nessa altura que conheceu o seu marido?
É verdade. Conheci-o pouco antes do Natal e foi amor à primeira vista. No dia 29 de janeiro estava a ser pedida em casamento. Eu tinha 20 anos e ele 28. Ainda mal nos conhecíamos. Praticamente nunca namorámos. Eu não estava muito segura de que o meu pai aceitasse. Estava bastante ansiosa.
O pedido foi dificílimo porque o meu pai não o conhecia de parte nenhum, não sabia quem era a família, não sabia nada. Fez-lhe uma série de perguntas: onde é que ele trabalhava, o que é que fazia, quanto ganhava, quem eram os pais, quem era a família, o que tencionava fazer na vida. Lembro-me de que corei durante toda a refeição. Estava atrapalhadíssima porque era um inquérito exaustivo.
Nesse mesmo jantar, o pai perguntou o que ele achava se viesse trabalhar no negócio da família. Ele era gerente da Cuca [cervejeira] em Luanda. O patrão dele era Caetano Beirão da Veiga, que por coincidência foi o primeiro e único patrão do meu pai. Ele disse que depois falavam sobre isso, mas que, em princípio, sim, embora ele tivesse de dar muitos meses à empresa, porque não era fácil arranjar uma pessoa para a posição dele. Ainda ficou quase um ano na Cuca e depois veio trabalhar connosco.
Depois desta conversa, o meu pai não queria que eu ficasse em Luanda com o meu noivo. Respondi que era ridículo. “Já vivi em Paris, vivo sozinha em Luanda e agora porque tenho um noivo não posso ficar aqui?! Sendo assim, não quero noivado nenhum, porque eu tenho de o conhecer melhor.” Com este argumento o meu pai deixou. Acordámos que casaríamos no verão. Em maio voltei para Lisboa para tratar das coisas.
Depois do casamento voltou para Luanda?
Casei a 9 de setembro de 1969 e rapidamente voltei para Luanda. O meu marido acabou por deixar a Cuca e veio trabalhar no negócio da família. Mas não correu bem. Eu não gostava de trabalhar com o meu marido e isso começou a prejudicar a minha vida familiar. É complicado trabalharmos durante todo o dia juntos e chegar a casa e conseguir esquecer as discussões que tivemos por causa da empresa e ter uma harmonia de marido e mulher.
Decidi que ia procurar emprego. Respondi a um anúncio para operadora de telefax numa empresa de importação e exportação. Expliquei que sabia trabalhar com a máquina, mas quando me perguntaram o que fazia, decidiram antes convidar-me para gerente. Aceitei o cargo.
Mandei dizer ao meu pai que não queria trabalhar com o meu marido. Eu tinha encontrado emprego. O meu pai não era de indecisões, apanhou o avião e foi a Luanda. Na véspera de eu entrar para o novo emprego, conversámos até às quatro e meia da manhã. E o meu pai fez-me desistir. Mas eu impus as minhas condições. Como estávamos a construir a fábrica de contadores de água, ficou decidido que eu ficaria com a área de produção e o meu marido com a área comercial e a empresa de material elétrico.
Tinham pontos de vista diferentes no que respeitava à condução da empresa?
As pessoas não são todas iguais e as empresas geram discussão. É o mesmo com os meus irmãos. Discutimos e lutamos pelos nossos pontos de vista.
Nunca se sentiu discriminada por ser mulher em Angola?
Nunca. Mas senti isso cá. Ainda hoje, a mulher portuguesa não tem uma situação de igualdade em relação ao homem. Em África também não se sentia o desnível social. Já depois de casada, tivemos uma loja de material elétrico e lidávamos muito com eletricistas e mestres-de-obras. Sempre foram corretíssimos comigo. Depois do 25 de Abril, alguns que entretanto foram para o Brasil diziam-nos que tinham lá um lugar também para nós.
O ambiente era totalmente diferente. Não havia a diferenciação de classes que há aqui. No interior os restaurantes tinham bancos corridos, não tinham toalhas e sentávamo-nos todos a confraternizar. A casa onde vivíamos foi comprada a meias com um amigo do meu marido e a mulher. Ali viviam duas famílias. As crianças em baixo – um quarto para os rapazes e outro para as raparigas – e os dois casais em cima. Ao fim de semana púnhamos a mesa e aguardávamos quem viesse. As pessoas traziam as lancheiras e punham em cima da mesa. Muitas vezes o meu marido ia à pesca logo de manhã e trazia peixe-espada, que assávamos na grelha. Comíamos, tomávamos banho e assim passávamos o dia. Era uma vida simples, descontraída. Não era uma vida com preconceitos. Viesse o eletricista, viesse o mestre-de-obras, viesse quem viesse, era bem recebido.
Custou-lhe deixar Luanda?
Ficámos até 1975. Foram oito anos em África, que representaram o melhor período da minha vida. Saí de lá triste, mas a vida tornara-se impossível. A nossa casa ficava entre a sede do Movimento Popular de Libertação de Angola e a do Frente Nacional de Libertação de Angola e era um inferno. Toda a noite a ouvir as balas.
Regressei com os meus filhos em maio. Trazia um bilhete para voltar depois da independência, mas já não foi possível. O meu marido veio em setembro – duas semanas antes da independência. Ainda apanhou um susto: uma rajada de metralhadora que entrou pelo carro. A bala ficou presa no elevador do vidro da porta. O autor do disparo foi ter com ele e explicou que a arma estava encravada.
Com a empresa nunca tiveram problemas?
Nunca tivemos problemas com a empresa. O que aconteceu foi que a partir de determinada altura os trabalhadores começaram a ir embora porque pertenciam ao partido das suas terras de origem. Ficámos com poucos.
Na nova fábrica não confecionávamos as refeições. Vinham de fora e eu empratava o almoço para todos os trabalhadores. Não passaria pela cabeça de uma administradora em Portugal fazer isso! Comecei a aproveitar os restos que ficavam na panela para dar almoço aos meninos do musseque que ficava junto à fábrica. Rapidamente passei a ter um grupo de 15 que vinha sempre. O encarregado da fábrica levava-os ao balneário, onde eles tomavam banho antes de vestirem a roupa que lhes arranjávamos. Falei com a escola primária que havia ao nosso lado e consegui que passassem a ter aulas. Foi a primeira vez que tive uma ação social, porque eu sentia que podia ser útil naquele país. Havia tanta coisa por fazer que, por pouco que fizéssemos, tudo era útil. Mas tive de voltar à Metrópole porque já estavam a fazer as carreiras aéreas para as mulheres e as crianças se virem embora.
O que fez depois de regressar a Lisboa?
Aqui tínhamos a fábrica dos contadores de água e de eletricidade e a empresa que comercializava os produtos fabricados. Essa empresa fora desativada, mas ainda tinha uma série de coisas pendentes: recebimentos a fazer, cauções que tinham sido feitas e que ainda não tinham sido desativadas. Comecei por aí.
Como se impôs na empresa?
A liderança é muito complexa. Para mim foi muito difícil porque cresci aqui dentro, a dar beijinhos, depois passei ao aperto de mão, depois deixei de dar aperto de mão. Não podia dar apertos de mão a todos e não ia dar a uns e não dar aos outros e, por fim, o que mantenho até hoje, cumprimento pelo nome todos os colaboradores que comigo se cruzam. São etapas que tive de fazer sozinha. Mas todos temos os nossos degraus para nos afirmarmos nas nossas funções.
Já tinha feito todos os postos de trabalho de um escritório. Trabalhei ao lado das pessoas e depois aceitaram-me naturalmente como administradora, deixaram de me tratar por Teresa e passaram para Dona Teresa. E isto não se pede a ninguém.
Estava no pós-25 de Abril. O ambiente na empresa foi afetado pelo período revolucionário?
Não. Nesta altura houve uma reunião na empresa entre os acionistas e a comissão de trabalhadores. Eles queriam autogestão, nós argumentámos que autogestão era uma situação que já nem se usava e que o melhor era uma cogestão. Convidámo-los a trabalhar connosco no conselho de administração e eu assumi o lugar de administradora, em representação do meu tio.
Como viveram esses tempos conturbados?
O meu pai gostava muito de falar com eles. Nunca tivemos aqui um grupo com muita influência do PCP, mas tínhamos da União Democrática Popular. O meu pai nunca fazia nada sem ter uma intenção. Quando chegou à altura de negociar os aumentos de salário, o meu pai disse-lhes qual o bolo que havia e deu-lhes a liberdade de o distribuírem. Quando começaram a olhar para os salários uns dos outros, desentenderam-se e deixaram essa tarefa para o meu pai.
Entretanto, apareceu uma lista de pessoas a sanear sem assinatura dos responsáveis. O meu pai disse que não aceitava uma situação daquelas, sem que as pessoas se responsabilizassem. E surgiu também uma acusação de desvio de dinheiro. Como tinha irmãs no Brasil, quando o meu marido regressou de Luanda foi passar um mês no Brasil, para ver se queria lá ficar. Eu estaria onde ele estivesse e os miúdos estivessem em segurança. O Brasil era muito giro para passar férias, mas era uma insegurança para viver. A verdade é que os trabalhadores acharam que o meu marido tinha desviado dinheiro da empresa quando foi ao Brasil sondar o mercado. O meu pai teve de pedir uma auditoria que veio provar que nunca tinha havido desvio. Inclusive os dividendos dos acionistas não tinham sido levantados nos últimos dois anos para fazer face a uma série de despesas. O meu pai ficou magoado com a situação e retirou-se.
Que idade tinha o seu pai?
Isto foi em 1976, o meu pai tinha 61 anos. Ele foi para casa e aproveitou para fazer um estudo exaustivo do que a empresa precisava para se reerguer. Tinha havido aqui muita confusão, os chefes tinham perdido a sua autoridade. O meu pai fez um plano em que propunha a mudança de alguns chefes de secção e a entrada para diretor industrial do General Ferreira da Silva, que tinha sido nosso chefe de controlo de qualidade. Antes de regressar à empresa, o meu pai fez uma reunião geral com os trabalhadores, em que leu as partes essenciais daquilo que se propunha fazer e disse que só voltaria se todos aceitassem as suas propostas. Só quatro pessoas votaram contra. Em 1977 já tínhamos de novo a empresa no caminho certo.
Durante esse período manteve-se sempre na administração? E o seu marido?
Eu continuei na administração. O meu marido e a mulher do meu irmão reativaram e reergueram a empresa de comercialização, a Resopre. Foi uma boa solução. Sempre trabalhámos bem entre irmãos e com o pai foi sempre pacífico: discutíamos, analisávamos as coisas, mas nunca houve nenhuma situação difícil. Qualquer coisa que disséssemos uns aos outros, no dia seguinte estava esquecido. Mas se eu dissesse alguma coisa à minha cunhada ou ao meu marido seria uma coisa para a vida.
Juntos fizeram uma boa equipa?
Sem dúvida. Recuperaram a Resopre e abriram novos caminhos. Começaram com a área de estacionamento – hoje é o meu filho mais velho que está à frente do estacionamento, com os parcómetros, gestão de parques de estacionamento, controlo de acessos e bilhética –, o urbanismo, os parques infantis, o mobiliário urbano, os pavimentos, a reciclagem, as tubagens. Hoje já estão os dois reformados. Aliás, na nossa geração estamos todos reformados, mas continuamos a trabalhar na empresa. Já temos os filhos e genros a trabalhar aqui. O meu filho do meio e a filha mais nova do meu irmão mais velho, juntamente com ele, tomam conta da Resopre. Aqui temos um genro do meu outro irmão, um filho da minha irmã mais nova, outra filha do meu irmão mais velho, e a minha filha Maria João.
Este ano [2015] o Grupo das empresas Janz completa 100 anos desde a sua fundação e no final do ano a geração seguinte assume mais responsabilidades na gestão das empresas, retirando-se praticamente a nossa, que só se manterá na holding.
O seu percurso foi sempre feito no seio dos negócios da família?
Sim e não. Quando comecei a trabalhar nesta empresa achei que me faltava mais qualquer coisa. Tinha curiosidade em saber como eram as outras empresas. O meu pai, que tinha passado pela AIP – Associação Industrial Portuguesa, CIP – Confederação da Indústria Portuguesa, ANIMEE – Associação Nacional dos Industriais de Material Elétrico e Eletrónico e pelo Grémio dos Metalúrgicos, sugeriu que eu fosse falar com Rocha de Matos.
Naquela altura eu estava na dúvida entre abraçar a política ou dedicar-me ao associativismo. Quando falei com Rocha de Matos fiquei convencida. Comecei por uma revista de eletricidade, da qual a Bruno Janz era sócia. Na Assembleia Geral para a aprovação de contas fui convidada a presidir à mesa. Embora já tivesse trabalhado aqueles anos em África, nunca tinha presidido a uma mesa de Assembleia Geral com a EDP, o Metropolitano de Lisboa, todos acionistas importantes. Mas sempre fui atrevida, aceitei. Na Bruno Janz o presidente da mesa era o Dr. Gomes Mota, advogado, e eu procurei fazer como ele fazia aqui. Confesso que os meus joelhos tremeram. Fiz, saí-me bem e nunca mais deixei de o fazer.
Entretanto, integrei a direção da AIP, da ANIMEE e da Associação dos Metalúrgicos. Foi aí que mais senti o peso de ser mulher. Não era habitual terem senhoras. Enquanto na AIP já iam aparecendo algumas, como a Rosalina Machado, por exemplo, na Associação dos Metalúrgicos eram só homens. Nos metalúrgicos do Norte nem era muito bem recebida. Quase me mandavam coser meias para casa. Achavam muito mal que fosse uma senhora.
Sentia animosidade. Quando a Confederação da Indústria, que estava satisfeita com o trabalho que eu estava a desenvolver com eles – em tudo o que me meto, faço-o de forma empenhada e séria –, me propôs para presidente do conselho de setor, onde estavam as associações navais, dos metalúrgicos, do material elétrico, das bicicletas e dos arames, houve discussão entre os representantes das associações do Norte porque não achavam bem serem liderados por uma mulher.
Não era o seu currículo que estava em causa, mas apenas o facto de ser mulher?
Era só por ser mulher.
Acabaram por ceder?
Eu disse: “Eu estou disponível, mas se não querem, tudo bem.” Houve depois uma discussão acesa entre eles e foi sobretudo o presidente da Associação Naval, que era uma joia de pessoa, que disse: “Eu proponho e insisto que seja a Sr.a D. Teresa, pela forma como ela tem conduzido sempre os trabalhos e pela sua competência. Acho que precisamos aqui de uma pessoa que também seja mediadora e que pense como nós, que somos todos empresários.” Foi assim que conquistei o meu primeiro lugar de destaque.
Representei várias vezes a Confederação da Indústria em reuniões sobre educação e formação profissional. O Sistema Nacional de Aprendizagem (SNA) era para mim muito grato. 20% do capital da Bruno Janz era suíço e fui várias vezes à empresa suíça fazer estágios. Queria aprender como é que eles faziam, porque os suíços estavam a anos-luz de avanço em relação a nós.
Representei a CIP não só na UNICE – União das Indústrias da Comunidade Europeia, em Bruxelas, como em Berlim no CEDEFOP – Centro Europeu para o Desenvolvimento da Formação Profissional da Comunidade Económica Europeia. Aprendi imenso porque o Cedefop é onde se fazem os estudos daquilo que vai ser feito em cada um dos países. Aí tive de apresentar um trabalho muito interessante sobre Gestão no Feminino.
A que conclusões chegou?
Cheguei à conclusão de que a gestão não tem sexo. Pensei que as feministas iam dar cabo de mim. Nunca fui feminista. Defendo o papel da mulher, mas não defendo as quotas. Compreendo-as, mas não as defendo. Eu não aceitaria que me convidassem para preencher uma quota. Tive vários convites para fazer parte da Associação das Mulheres Empresárias e nunca aceitei. A vida é feita de homens e mulheres. Acho que devem lutar e criar esses movimentos, mas não comigo. Sempre tive de abrir portas como mulher. Portanto não aceito que me convidem por ser mulher, aceito que me convidem pela competência e pelo trabalho desenvolvido. Porque sempre tive de me movimentar num meio masculino.
Como é que se comportava nessa situação?
Caladinha, fazendo o meu trabalho. As pessoas vêm buscar-nos porque há pouca gente com vontade para trabalhar. Havia também poucas pessoas que reunissem a minha experiência e o conhecimento sobre o sistema dual – o sistema de formação em sala e em posto de trabalho. Eu já tinha visitado uma série de empresas alemãs e suíças para ver como trabalhavam com o sistema dual. Quando me convidaram para ir para o SNA – Sistema Nacional de Aprendizagem era das poucas pessoas que tinha experiência do assunto.
Impôs-se pela experiência?
Quase todos os conteúdos programáticos da formação em posto de trabalho na metalomecânica e metalurgia foram apresentados por mim. Até que um dia acordámos uma revisão possível do SNA. Entre todos – sindicatos, associações patronais e representantes do governo –, chegámos a uma determinada correção, com a qual a CIP não concordou. Eu disse: “Uma coisa é não concordarem e dizerem porque é que não concordam. Outra é a situação de consenso a que todas as partes têm de chegar.” Eles insistiram e eu recusei continuar a trabalhar assim. Numa situação em que as partes são antagónicas, para se chegar a um consenso tem de haver cedência de todas as partes. Num trabalho que é técnico não pode haver estas querelas políticas. Não é porque a posição patronal é uma e a sindical é outra que podem interferir num trabalho técnico. E eu dava-me muito bem com os representantes sindicais, o João Proença e o Carvalho da Silva. São pessoas que se empenharam muito seriamente nisto e que, embora estivessemos em situações opostas, conseguimos chegar a um consenso, fruto do trabalho que fizemos. E portanto disse para não contarem mais comigo. Foi então que deixei o Sistema Nacional de Aprendizagem.
Entretanto a Associação Industrial Portuguesa criou os seus núcleos empresariais e convidou-me para, juntamente com outros empresários, fundar o NERLIS – Núcleo Empresarial de Lisboa. E, quando nos autonomizámos e criámos a Associação Empresarial de Lisboa, convidaram-me para presidente. Foi uma época muito boa e fizemos coisas muito giras. Como a Aerlis fazia parte do conselho de administração da Associação Patronal das Capitais Europeias, durante um ano fui também presidente dessa associação. Foi o ano em que fizemos o congresso em Lisboa. Correu muito bem, foi muito bom. Depois afastei-me.
Terminou então a sua atuação no associativismo?
Sim. Aos 65 anos decidi dedicar-me apenas à empresa e à nossa associação. O meu irmão Manuel Janz, engenheiro mecânico, trata da área da produção e eu trato da gestão. Mas temos pessoas nas equipas com formação técnica, licenciados quer em Engenharia quer em Económicas. Tenho esta parte da empresa de gestão de serviços e estou nos conselhos de administração de cada uma das outras empresas. Penso que sou a única que sou administradora de todas as empresas do grupo. E vivo feliz. Já não trabalho tantas horas. Cheguei a trabalhar 14 horas por dia.
Dividia-se pela administração da empresa e pela área associativa?
Eu tratava essencialmente dos Recursos Humanos. Tratei da parte comercial quando estava em África e, de certa forma, também da industrial. Deixei essa área e entrei na área dos Recursos Humanos, onde eram quase todos homens. Era só eu e a Senhora Dona Maria Antónia, que hoje é a responsável pelo nosso gabinete de comunicação e edição do nosso jornal, Preto no Branco.
Como é que conciliava a carreira com a vida familiar?
Se não fosse o meu marido a apoiar-me seria muito difícil. Tive sempre a sorte – não sei se foi sorte ou se foi trabalho – de o preparar para isto. Quando ele me conheceu eu já trabalhava e sabia o que queria da vida. Ele adoraria que eu ficasse em casa a criar os filhos. Mas nunca aceitei isso e desde o princípio disse: “Vou ter apenas o número de filhos a que consiga dar atenção”. Tivemos três filhos. O meu marido sempre teve de partilhar a minha vida de forma a que eu pudesse fazer as viagens todas que fiz. Viajei sempre sozinha e, quando ele viajava, viajava sempre sozinho. Era preciso ficar um de nós para tomar conta dos filhos.
Dividíamos as tarefas. Eu ficava encarregue dos biberões da noite e ele dos da manhã. Ensinei-lhe a fazer as coisas básicas em casa: fritar, fazer o arroz, uma sopa. Hoje continua a fazer. Foi um bom pai, é um bom marido e um bom avô. Mas foi preciso muito diálogo para aceitar que eu trabalhasse.
Teve sempre esse apoio?
Sem isso e sem uma boa empregada interna não seria possível.
Sentiu a culpa que muitas mulheres referem por se terem dedicado à carreira?
Não. Sempre tive a convicção de que nunca fui nem boa empresária, nem boa mãe. Mas dei tudo aquilo que tinha para dar.
O que diria a essas mulheres?
A minha filha teve uma aula sobre a emancipação da mulher e a professora perguntou-lhes o que achavam. Ela ouviu tudo, até que quando chegou à vez dela, respondeu: “Eu acho que emancipação é a mulher poder escolher se quer ficar em casa a tratar dos filhos e do marido ou se quer trabalhar numa empresa, que é como faz a minha mãe, e que é uma grande confusão! Ela farta-se de trabalhar e ainda vai para casa tratar de nós e fazer os trabalhos connosco. A emancipação da mulher é ela poder escolher o que quer da vida”. Os meus filhos sempre souberam que a mãe tinha este modo de vida. Não foi fácil também para eles. Mas ainda hoje defendo que a independência da mulher também passa por contribuir com o seu rendimento para o orçamento familiar.
No seu círculo de amigas como era encarada a sua dedicação à carreira?
As minhas amigas tinham outras responsabilidades, diferentes das minhas. Hoje tenho muito orgulho em mostrar a nossa Associação e a empresa. Quando nos visitam veem o que é que eu fiz durante a minha vida toda. E sei que têm muito respeito por mim.
Compreendiam as circunstâncias da sua vida? Provavelmente não tinha muita disponibilidade para estar com elas.
Como vivi durante oito anos em África desliguei-me de muitos amigos de solteira. Hoje encontramo-nos pontualmente. Os meus amigos foram a família, tanto a do meu marido, que são nove irmãos vivos, como a do meu lado. E os amigos das nossas atividades. Temos vários grupos: os amigos do peito, os das viagens de avião, os das motas e os das viagens de barco. Lá conseguimos arranjar tempo para estar com todos. Eu já deixei de conduzir mota, mas continuo a ser pendura do meu marido. Temos um barco à vela e tenho a carta de patrão de costa. Graças ao meu pai, tirei-a juntamente com os meus irmãos.
Acha que imprimiu mudanças na empresa por ser mulher?
Na parte humana, sim. Mas já havia muito trabalho feito do tempo do meu pai que eu tenho procurado manter, pois é a favor do bem-estar dos trabalhadores. Quando o meu pai fez 80 anos de idade e 50 de empresa fizemos um número do nosso jornal interno em que se entrevistaram várias pessoas. Os testemunhos que as pessoas fizeram do meu pai foram muito curiosos. Um deles era de uma rapariga que estava com contrato a termo quando ficou grávida. Quando acabou a licença de parto, regressou à empresa convencida de que a iam mandar embora. Porque isso é que era usual fazer-se nas empresas. Quando li aquilo, pensei: “Usual nas empresas?!” Chamei-a e ela disse-me: “Achei muito estranho quando regressei. Continuei a trabalhar e ninguém me pôs na rua.” Fiquei incrédula e perguntei: “Mas tem a certeza de que fazem isso?”. “Fazem, fazem…”, respondeu-me. E hoje sei, pela minha nora mais velha, que trabalha num banco, que quando entrou teve de se comprometer a que nos primeiros anos não ficava grávida!
Nós não fazemos porque somos melhores do que os outros. Fazemos porque é a nossa forma de estar na vida. A maternidade deve ser incentivada e quanto mais novos forem os colaboradores, melhor. Educam os filhos numa idade apropriada. Não é com 50 anos que os vão educar. Não há a mesma energia.
Da sua experiência e observação, acha que as mulheres se comportam de forma diferente na vida profissional, enquanto líderes?
Todos nós temos uma parte feminina e uma parte masculina. Mas se generalizarmos, acho que, de uma forma geral, a mulher tem maior sensibilidade e é mais detalhista. O homem vê mais por alto. Não é indiferente porque é que numa linha de montagem de peças pequenas há mais mulheres do que homens. O homem satura-se mais com trabalho de minúcia, repetitivo.
A mulher é mais estudiosa, leva as coisas com maior maturidade e isso desiste menos da universidade do que os homens. Em posições de chefia a mulher aporta sempre uma humanização. Mas claro que há exceções.
A empresa tem preocupações com a conciliação entre a vida pessoal e profissional dos seus colaboradores?
O facto de termos a Associação é muito importante. Uma mulher que sabe que pode ter a criança ao lado do local de trabalho e que lhe pode dar de mamar ao longo do dia, já é uma conciliação substancial. Por outro lado, embora tenhamos horário flexível para toda a produção, o que é raro na indústria, somos rigorosíssimos com os horários de saída. Qualquer mulher pode sair às 16h15m, o que lhe permite um fim de tarde muito mais alargado com a família. Só em situação de emergência é que fazemos horas extraordinárias. Isto também é conciliação.
Ter a associação aqui, que só fecha às 19h30m, permite que as funcionárias estudem fora das horas de serviço. Não há progressão na carreira se não houver também progressão nos estudos.
A quantidade de empresas que quando recrutam perguntam às mulheres se querem ter filhos e fazem acordos para que não engravidem durante determinado número de anos, ou que as despedem quanto estão grávidas! Eu nem sabia que essas situações aconteciam. Aqui não acontece. A função da mulher é ter filhos, porque o homem não os pode ter. Quanto mais cedo os tiver melhor, porque tem mais saúde e os pode acompanhar durante mais anos. É a nossa forma de estar. O meu pai sempre pensou assim. E nós também.
A ideia da Associação partiu de si?
A primeira pessoa a falar na Associação foi a minha avó Ester. Era preciso uma creche para as trabalhadoras da produção deixarem as suas crianças. Naquela altura não foi possível concretizar a ideia, mas quando vim para a empresa falei nisso com o meu pai. Ele já tinha criado um grupo de trabalho de colaboradores para avançar com o projeto e incentivou-me a ajudá-los. Sou apologista de que duas cabeças pensam melhor do que uma. Gosto muito de trabalhar com grupos de trabalho pequenos, até cinco pessoas, senão já não funcionam.
Como a Câmara Municipal de Lisboa não queria vender o terreno, pedimos o direito de superfície. Nós pagamos uma renda simbólica e os pais das crianças são sócios da instituição, por um euro por mês. A empresa financiou a construção do espaço e gere a Associação. Sou presidente desde essa altura, porque acho que tem sempre de haver contenção nas despesas. A Associação não foi criada para esbanjar dinheiro. Tem todas as condições, mas sem exageros.
Hoje está também aberta ao público e tem ajudado muitas famílias, carenciadas e outras, que procuram um ensino e ambiente familiar onde cuidamos das crianças com amor. Tem 350 crianças e cerca de 80 colaboradores.
Há algum erro que a tenha marcado?
Não me importo de dar o braço a torcer. É-me pedido que tome decisões, muitas vezes rápidas. E quem toma decisões, por vezes, erra. Se chega mais uma informação, posso voltar com a palavra atrás. Tem que ver com o sentido de justiça. Muitas vezes falta informação para a decisão ser justa. Se é preciso rever, muda-se. Não é vergonha nenhuma. É assim que deve ser.
Que conselho daria a uma jovem gestora?
Os mesmos que dei à minha filha. Primeiro que tudo, respeito pelos outros. Consenso nas decisões. Não tomar uma decisão de imediato, deixar sempre passar uma noite para decidir um assunto sério. Procurar informar-se bem sobre as situações e não agir só de acordo com a informação de uma pessoa. Lembrar-se de que ninguém é polivalente. Há que escolher as pessoas mais competentes que puder para trabalhar consigo. E ser justa. A justiça é muito difícil, muito relativa, mas procure fazer tudo de acordo com a sua consciência, assim estará a ser justa para si, que é o mais importante. Muitas vezes temos de nos pôr no papel do outro. Como me sentiria? O que o levou a agir assim? Infelizmente, estas coisas não se aprendem na faculdade.
Uma conquista ou um feito de que se orgulhe em particular?
No outro dia pediram-me um currículo. Nunca tinha feito um, porque nunca tinha necessitado. À medida que o ia fazendo, pensei: “Realmente, a quantidade de coisas que fiz em pouco tempo!”. O tempo passou depressa. Nessa altura refleti sobre o que estava para trás. Tenho tido tanta coisa boa na minha vida, profissional e pessoal. Gozo a vida dia a dia. Tenho viajado e isso tem-me aberto os olhos perante o mundo. Tiro muito partido da vida.
Mas tenho de confessar que a menina dos meus olhos e minha grande conquista é a Associação Ester Janz. Empenho-me por zelar, dentro das minhas possibilidades, pelo bem-estar dos nossos colaboradores e tornar a minha família e os meus amigos felizes pelos tempos que ainda nos restam.
CURRÍCULO ABREVIADO de Teresa Janz Guerra:
1948 Nasce em Lisboa. É a terceira de quatro irmãos.
1967 Frequenta o curso de Civilização Francesa na Sorbonne.
1968 Viaja para Angola para acompanhar a falência da Soanco.
1969 Recupera a Soanco e assume o cargo de gerente comercial.
1975 Regressa a Portugal.
1976 Administradora da Janz.
1982 Presidente da Direção da Associação Ester Janz.
1983 Membro da Direção da AIMMS e fundadora do CENFIM.
1984 Presidente do Conselho do Setor das Indústrias Metalúrgicas, Metalomecânicas, Elétricas e Eletrónicas da CIP.
1985 Membro do Conselho Nacional de Aprendizagem.
1987 Membro da Direção da NERLIS.
1990 Membro do Conselho Pedagógico da CEQUAL.
1992 Membro da Direção da AERLIS.
1993 Vice-Presidente do Conselho de Administração da OPCE.
1994 Vice-Presidente do Conselho Geral da AIP e Presidente da Direção da AERLIS.
1995 Presidente do Conselho de Administração da OPCE.
1996 Vice-Presidente do Conselho de Administração da OPCE.
1998 Vice-presidente da BJH-SGPS.
2000 Recebe a Comenda de Ordem de Mérito pelo trabalho desenvolvido na proteção social dos trabalhadores através da Associação Ester Janz.
Assume a presidência da direção da AERLIS e é membro do Conselho Superior da APEF.
2002 Presidente do Conselho de Administração da Janz – Consultores de Gestão e administradora da Janz – Mecânica de Precisão.
2004 Administradora da Janz – Contadores de Energia.
2009 Administradora da Janz – Contagem e Gestão de Fluídos.
2013 Retira-se do associativismo e dedica-se apenas aos negócios da família e à Associação Ester Janz.
Esta entrevista consta do livro “Memórias de Executivas”, publicado em 2015, onde encontra outras histórias de pioneiras que deixaram a sua marca no mundo dos negócios.
Fonte: https://executiva.pt/teresa-janz-guerra/