Aproveitamento de águas pluviais e de águas cinzentas em edifícios.
Normas e especificações técnicas
Rita Ribeiro – Investigadora Auxiliar do LNEC
Associado ao crescimento populacional, as alterações climáticas e a progressiva urbanização da sociedade têm aumentado a pressão sobre os recursos hídricos. A par de mudanças comportamentais no uso da água e da utilização de dispositivos mais eficientes, a utilização de origens alternativas permite reduzir a pressão na captação de água no meio natural para a produção de água potável. O aproveitamento de águas pluviais e a utilização de águas cinzentas tratadas em usos que não requerem potabilidade (por exemplo, a rega de espaços verdes e a descarga de autoclismos) são medidas com elevado potencial de redução do consumo de água potável no meio urbano. No entanto, não se regista a generalização da sua aplicação em Portugal por razões várias. A normalização desempenha um papel importante na eliminação de barreiras técnicas, podendo ser relevante no presente caso.
A atividade normativa europeia no âmbito da engenharia de águas residuais é desenvolvida pela Comissão Técnica CEN/TC 165 – Waste Water Engineering do Comité Europeu de Normalização (CEN). O acompanhamento nacional da atividade normativa do CEN/TC 165 é assegurado pela Comissão Técnica CT 90 – Sistemas Urbanos de Água. As normas europeias relativas à utilização no local (onsite) de águas residuais tratadas são desenvolvidas pelo grupo de trabalho WG 50 – Use of treated wastewater. Até a presente data, foram publicadas duas normas de um conjunto de normas com a denominação genérica “Onsite non-potable water systems”: a EN 16941-1 “Sistemas de água não potável no local – Parte 1: Sistemas de aproveitamento de águas pluviais em edifícios”, publicada em 2018, e a EN 16941-2 “Sistemas de água não potável no local – Parte 2: Sistemas para a utilização de águascinzentas tratadas”, publicada em 2021. Seguidamente, é feita uma apresentação destas duas normas, com referência ao modo como a sua utilização poderá apoiar a implementação destes sistemas de água em Portugal.
As normas EN 16941-1:2018 e EN 16941-2:2021 têm como propósito o estabelecimento de requisitos para os sistemas de aproveitamento de águas pluviais (SAAP) e os sistemas de utilização de águas cinzentas tratadas (SUACT), respetivamente. Estas normas fornecem recomendações para o projeto, dimensionamento, instalação, identificação, comissionamento e manutenção dos referidos sistemas. Na EN 16941-2:2021, estão incluídos ainda aspetos relacionados com a monitorização da qualidade da água, algo que não acontece na EN 16941-1:2018. No entanto, ambas as normas fazem referência à abordagem fit-for-purpose, estabelecendo assim que o tratamento da água deve ter por objetivo a obtenção de características adequadas ao(s) uso(s) selecionado(s).
O âmbito das EN 16941-1:2018 e EN 16941-2:2021 é restringido aos usos não potáveis, designadamente: rega de espaços verdes, descarga de autoclismos, lavagem de roupa, fins de limpeza (por exemplo, lavagem de pavimentos e de veículos). Ambas as normas identificam claramente os usos que estão fora do âmbito, designadamente: uso para consumo humano e para preparação de alimentos; uso para fins de higiene pessoal; uso para atenuação descentralizada de caudais e infiltração de águas pluviais (no caso da EN 16941-1:2018); utilização direta sem tratamento e consumos na recuperação de calor e arrefecimento (no caso da EN 16941-2:2021).
Os sistemas prediais definidos pelas normas EN 16941-1:2018 e EN 16941-2:2021 são constituídos por quatro elementos funcionais principais: recolha, tratamento, armazenamento e distribuição. De acordo com estas normas, é importante considerar a ocorrência de disponibilidade excessiva de água de origem local (água pluvial e águas cinzentas) e, de modo inverso, a sua carência. Deste modo, é feita referência à necessidade de se incluírem zonas de transbordo devidamente dimensionadas, a ser acionadas quando é atingida a capacidade máxima do sistema. Por outro lado, sempre que é necessária a disponibilidade permanente de água nos pontos de utilização, estes sistemas devem incluir um fornecimento complementar (suprimento), normalmente com água potável. Este último aspeto, o abastecimento com água de reserva, é desenvolvido no texto normativo com particular cuidado, sendo estabelecidos requisitos mínimos para os SAAP e SUACT no sentido de ser evitada a contaminação da rede de água potável.
Em ambas normas é estabelecida a necessidade de realização de uma avaliação do risco associado ao aproveitamento de águas pluviais e de utilização de águas cinzentas tratadas, com consideração dos potenciais impactos sobre pessoas, meio ambiente e infraestruturas e equipamentos.
Esta avaliação de risco deve abranger as fases de projeto, instalação, teste e comissionamento, operação e manutenção do sistema predial de água não potável. A identificação clara de todos os componentes dos SAAP e SUACT, incluindo acessórios e pontos de utilização de água, é outro aspeto que merece desenvolvimento especial nestas normas. Salienta-se, pela sua relevância para a segurança no uso da água, o requisito de colocação de um sinal com aviso da existência de um sistema de água não potável junto da válvula de alimentação da rede predial de água potável.
Apesar do consenso existente em termos do reconhecimento do valor associado aos sistemas de aproveitamento de águas pluviais e aos sistemas de utilização de águas cinzentas tratadas, diversas barreiras têm limitado a generalização da sua aplicação nos edifícios. A normalização técnica pode desempenhar um papel importante na eliminação de barreiras técnicas existentes, através da uniformização de procedimentos e critérios. As normas EN 16941-1:2018 e EN 16941-2:2021 são documentos do domínio público que compilam conhecimento e metodologias validadas a nível europeu e estabelecem diretrizes para o projeto, dimensionamento, instalação, identificação, comissionamento e manutenção dos SAAP e dos SUACT, respetivamente. Apesar da sua utilização ser voluntária, crê-se que estes documentos normativos podem contribuir para uma maior utilização de SAAP e SUACT em Portugal, uma vez que facilitam a comunicação entre os diferentes agentes envolvidos e refletem a experiência europeia neste domínio.